O curioso caso de um rico de aluguel
Memórias de um brasileiro comum em situações incomuns, mas sempre no figurino certo!
Os fogos com as cores vermelha, azul e prata estouravam no céu ao som da banda que, ao vivo, garantia o clima festivo, enquanto, do chão, cerca de 2.000 pessoas celebravam. Diplomatas, militares em farda de gala e representantes de diversos setores da economia conversavam de forma animada.
Diferentes idiomas.
Ao fundo, o lago Paranoá refletia a tímida e parcial lua no céu de Brasília, imortalizado pela canção “Linha do Equador”, de Djavan, enquanto, no píer, um grupo de marines americanos, soldados de elite, observava tudo de dentro de um barco, com ar despreocupado.
Em terra, um bar ao ar livre servia drinques variados, enquanto as pessoas se serviam de acordo com suas preferências. Garçons passavam com canapés típicos da cultura sulista dos Estados Unidos, e churrasqueiras espalhadas pelo imenso iate-clube ofereciam porções de picanha americana importadas especialmente para a festa.
Poucos minutos antes, eu havia cumprimentado o representante diplomático do governo americano no Brasil, num momento em que ainda não havia sido nomeado um novo embaixador ou embaixadora. O ambiente, que mais parecia uma cena digna de filme do 007, abrigava as comemorações do 4 de Julho, Dia da Independência dos Estados Unidos.
E lá estava eu: “rico de aluguel”.
Note: o rico de aluguel é diferente do “cosplay de rico”, que finge ser o que não é. O rico de aluguel, que é o meu caso, é pago para, profissionalmente, circular em ambientes que, com certeza absoluta, estão distantes do seu CPF.
Por essas e por outras que, para mim, uma das mais belas sutilezas da nossa língua portuguesa, tão diferente de tantas outras, é a distinção entre “ser” e “estar”, a plena consciência entre o que é perene e o que é transitório.
Não se trata, portanto, de mera semântica, mas da possibilidade de olharmos para nós mesmos com distanciamento. E a prática desse distanciamento nos leva a lugares incríveis. Às vezes, mais legais do que os próprios lugares físicos que, por vezes, frequentamos.
Ou não.
Saber a diferença entre o CNPJ e o CPF faz bem para o bolso e, principalmente, para a saúde mental.
Explico.
Não se trata de falta de pertencimento ou de legitimidade. Ao contrário: faço parte do “clubinho” e tenho bons amigos nessas rodas, que me reconhecem como tal.
Mas no CNPJ, não no CPF. Se hoje sou eu e amanhã for outro, a vida segue sem grandes problemas.
Em outras palavras: o cidadão Ibiapaba Netto não pertence a esse ambiente, mas o diretor-executivo Ibiapaba Netto, sim.
E isso significa, de vez em quando, pagar alguns micos.
Era um dia de sol ameno quando saí de São Paulo, a convite da Secretaria Institucional da Presidência da República, para participar de um almoço em homenagem ao Primeiro-Ministro do Japão, no Palácio do Itamaraty. Era maio de 2024.
A foto abaixo dá o tom da “pompa e circunstância”: lugar marcado, copos, talheres, e um tsuru de origami feito, provavelmente, por algum artista japonês de renome. Pela sacada da cobertura do Palácio, talvez a obra-prima de Niemeyer, era possível ver os Dragões da Independência perfilados diante de um tapete vermelho, algo reservado à recepção de chefes de Estado.
Foram três horas de espera e vinte minutos de almoço.
O presidente Lula e o Primeiro-Ministro japonês entraram, sentaram-se à mesa cercados por assessores, os pratos foram servidos e, minutos depois, eles se levantaram e foram embora.
Eu ainda mastigava a sobremesa quando algumas pessoas da delegação japonesa, que estavam na minha mesa, se levantaram para acompanhar o representante nipônico, deixando a sobremesa no prato. Nem pense nisso: comi apenas a minha.
Após engolir a última colherada, restou-me levantar, olhar para o lado, ver o ambiente já esvaziado, dar “tchau” para alguns diplomatas brasileiros remanescentes e voltar para o aeroporto.
Há dias em que somos protagonistas. Em outros, coadjuvantes. E há, ainda, a hipótese, como foi o caso, de sermos apenas figurantes. Todo bom filme precisa dos três. Compreender as oportunidades de cada papel talvez seja uma das chaves para seguir bem na vida.
Nesse tipo de ambiente, normalmente, há um momento em que se cumprimenta as autoridades, troca-se cartão com assessores e há tempo para uma conversa de elevador que, futuramente, pode virar conversa de verdade.
Não foi o caso.
Se filme fosse, provavelmente, naquele dia, eu seria um daqueles figurantes que só aparece para levar um tiro e cair duro no chão. Mas tudo bem: fiz minha parte e, querendo ou não, institucionalmente eu tinha que estar lá.
Para mim, no entanto, nessa jornada de “rico de aluguel”, meus lugares preferidos são os mais exóticos. A foto abaixo é de uma festa na Embaixada do Brasil em Nova Délhi, capital da Índia. Eu acompanhava uma missão oficial do governo brasileiro que discutia melhorias no acesso ao mercado.
A imagem mostra o jantar oferecido pelo embaixador Kenneth Haczynski da Nóbrega à comitiva da missão.
A festa, no gramado, com mesas lindamente dispostas, as pessoas bem vestidas, com aquele ar exótico das vestes típicas dos convidados locais, tudo era muito diferente. E vamos combinar: a embaixada em si é lindíssima.
Havia uma certa névoa no ar que também conferia um tom de mistério ao lugar.
Tudo estava ótimo, exceto pelo detalhe de que a névoa que se vê na foto era, na verdade, poluição. Nova Délhi é uma das cidades mais poluídas do mundo, e aquela fumaça densa é parte constante da vida das pessoas em certas épocas do ano. Poético? Talvez. Tóxico, com certeza, especialmente para um rico de aluguel que, de vez em quando, sofre de crises de asma.
A vida de rico de aluguel, que viaja pelo mundo, conhece pessoas e lugares interessantes, tem seu charme.
Mas só se você for capaz de olhar com distanciamento. Se não, tudo vira tédio e trabalho. Quando, na verdade, é muito mais do que isso.
É crônica.
De um cronista incidental.
Essa é a regra, diversos "ricos de aluguel" espalhados pelo mundo. Essa turma de "figurantes" são o sucesso dos filmes que dão bilhões para os "artistas" de verdade.
Sou apaixonada pela sua escrita envolvente. A escolha de palavras me dá a sensação de estar em uma conversa íntima, daquelas que a gente não quer que acabem. 🖤