Somos todos escravos do desejo?
A verdade é que o mundo moderno continua tão moderno quanto há 3.000 anos
Há séculos a humanidade tenta decifrar as razões do desejo, e antes que você, mente poluída, pense que estou me referindo ao desejo carnal… sim, você acertou. Mas apenas como ponto de partida.
Safadinho.
Afinal, as melhores cagadas da história, daquelas memoráveis, nasceram do desejo. E, muito provavelmente, da falta de juízo de alguém. Veja o antológico caso de Páris que, malandrinho, roubou Helena, a mais bela das mulheres. O detalhe é que ela era esposa de Menelau, mas quem ficou realmente puto foi seu irmão, o sanguinário Agamenon, que só precisava de um bom motivo para ir pra guerra.
Agamenon, um psicopata com sérios problemas de ego, decidiu invadir Troia para se vingar e cortar a cabeça (ao que se saiba, a de cima) de Páris. Heitor, irmão de Páris e guerreiro dos bons, interveio para proteger o safadinho. Agamenon, que era corno, mas não idiota, quis botar Aquiles na confusão. Mas Aquiles, semi-deus e sensato, mandou Agamenon catar coquinhos, afinal, ele não tinha nada a ver com aquela merda.
Pátroclo, amigo e pupilo de Aquiles, sai em batalha com a roupa do mestre e morre pelas mãos de Heitor, que achava estar matando o próprio semi-deus. Aquiles, então, perde o juízo, mata Heitor. O resto é história: Aquiles morre com uma flechada no calcanhar (que merda!), Páris assume a bronca e continua com aquela que o mundo eternizou como Helena de Tróia.
O desejo venceu, e esfrega isso na cara dos corpos pelo chão ao longo de um mito com mais de 3 milênios, desde que essa história começou a circular. De lá para cá, a humanidade não mudou absolutamente nada. Seguimos tentando entender o que nos faz escravos dos próprios desejos.
E, agora, não apenas os carnais. Mas também eles.
Semana passada estive três dias em um evento em Belo Horizonte que reuniu a nata da indústria de infoprodutos, um mercado cujo espectro vai de estelionatários contumazes a produtores de conteúdo de altíssimo nível.
E o motor que gira essa indústria é o desejo.
É aqui que a conversa fica interessante.
E também contraditória.
David Hume (1711–1776), filósofo escocês da tradição empirista, dizia que os desejos guiam a razão. A razão, segundo ele, seria escrava das paixões.
Já para Immanuel Kant (1724–1804), ícone da ética do dever, os desejos devem ser domados pela razão moral. O ser humano racional é capaz, ou deveria, agir por princípio, não por impulso.
Em outras palavras, num diálogo imaginário, seria algo assim, num bar em algum lugar do tempo-espaço:
Páris: Puta que pariu, fiz uma cagada, rapaz. Roubei a mulher do maluco, o irmão dele, que é dono do outro morro, tá puto, vindo atrás de mim, e quer tomar aqui também!
Hume: Você não fez nada demais. É da natureza do homem. Vocês estavam apaixonados. O marido dela, o cara é um babaca.
Kant: Cala a boca, Hume! O que esse bosta fez está errado. Foi jantar na casa do sujeito e saiu com a mulher dele. No barco! Isso fere a ética universal, mesmo que o sujeito seja um psicopata homicida.
Páris: Eu pago a próxima rodada.
Todos brindam.
O mundo é orientado pelo desejo, e sempre será. As pessoas desejam melhorar de vida. Desejam viver algo único com “aquela” pessoa. Desejam uma casa nova, uma viagem inesquecível. Desejam se vestir melhor, aprender outro idioma. Desejam ser notadas.
Desejam atenção e carinho.
E, no fim, desejam encontrar meios para realizar os próprios desejos.
A questão é o que farão para alcançar seus objetivos.
E, muitas vezes, sem perceber, seguindo a lógica de Hume, tornam-se escravas das próprias paixões. Ou no caso, dos desejos.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, no badalado (e problemático) livro A Sociedade do Cansaço, descreve o “sujeito de desempenho”: aquele que, sem ninguém exigir, acorda às cinco, corre, leva o filho na escola, trabalha sem parar, dá duro… e foca.
Foca bagarai.
Ele entende a vida como um tatame de jiu-jítsu em que é preciso aplicar um mata-leão por dia, caso contrário será estrangulado pelo “rola” da vida.
O motor de toda essa disposição é o desejo. E, assim como quase todo mundo se torna escravo de seus desejos.
Percebi, entre as cerca de 4.000 pessoas daquele evento, que todos eram, assim como eu, escravos de algum desejo.
Alguns roubam a mulher do reino vizinho e vão à guerra por isso.
Outros vendem promessas vazias para quem deseja um atalho. Todo dia um otário e um idiota saem na rua. Quando se encontram, dá negócio.
E há, claro, os que só desejam um lugar à sombra porque, puta que pariu, esse sol tá de rachar! E lutam com honestidade por isso. A esmagadora maioria se enquadra aqui.
O que eu desejo?
Veja bem… como dizia o “filósofo” Pedro Malan:
“O futuro tem por ofício ser incerto.”



Gostei da abordagem! A boa surpresa foi não ter pagado pedágio a Freud, ratificando a paternidade do desejo que dão a ele. Discutir desejo fora dos saberes psi é muito potente, eu acho.
Gostei do filósofo Pedro Malan rsrsrs